sábado, 26 de setembro de 2015

A Zona da Cortisona



Quando falavam para mim que a vida da voltas, que falavam na lei do retorno, que não se pode mudar o destino e que carma é carma, eu não acreditava que isso era tão real e seria tão imediato na minha vida.
Eu não pedi, mas sofri um acidente quando criança e fui submetida a um tratamento à base de cortisona durante um longo período devido a vários coágulos que se formaram no meu cérebro, isso foi destino, estava escrito na minha vida que eu sofreria esse acidente.
Sobrevivi, como sequela eu me tornei uma criança gordinha vivi uma adolescente gorda e quando estava entrando na fase adulta já estava muito, mas muito gorda mesmo.
Um amigo que é médico me falou com uma naturalidade, própria de um profissional de saúde, no meio de uma festa, que no hospital onde ele trabalhava estavam fazendo a cirurgia para obesidade mórbida.
Na época que fiz a cirurgia, início dos anos 2000, existiam poucos estudos a respeito dos efeitos danosos que este tipo de cirurgia poderia causar, só se falava nos efeitos benéficos e foi apostando neles que eu embarquei de cabeça nessa empreitada.
Isso ai já fui eu tentando mudar o destino, o fato é que eu levei cinco anos para atingir a perda total de peso, foram no total 70 kg e quando isso aconteceu, algo mais aconteceu junto, eu passei a beber bebidas alcoólicas de forma mais intensa, me tornei alcoólatra e a sofrer como 67% das pessoas que são submetidas a esse tipo de cirurgia, mas como eu já disse, esses estudos só vieram à público quando para mim o processo já era irreversível.
Com o tempo eu passei a apresentar alguns problemas neurológicos que, aparentemente, eram causados pelo alcoolismo.
Cada vez que eu extrapolava na bebedeira eu perdia a coordenação das pernas durante um ou dois dias, perdia o controle dos meus esfíncteres anais no meio da rua e passava vergonha, mas quem sempre levava a culpa era a maldita da cachaça e é claro que, como toda e qualquer alcoólatra que já tinha sido internada algumas vezes e a última coisa que queria era ser novamente internada, eu dissimulava esses sintomas até o limite.
Eu sempre tinha a consciência pesada e não adiantava ficar discutindo, uma hora eu ia perder a razão, até que um belo dia, pouco após uma internação, eu estava em casa e passei a tomar um remédio prescrito por um neurologista que me causou uma reação adversa e me trouxe os mesmos sintomas, mesmo com ex-namorado como testemunha a minha família inteira adentrou a minha casa para ter certeza absoluta que eu era a maior mentirosa do mundo.
Aquilo me incomodou muito, muito mesmo, mas como sempre existe um culpado, dessa vez foi o remédio.
O relacionamento acabou, minha estabilidade também, existia a hipótese do problema neurológico ser bem grave os sintomas só pioravam e nem bebi tanto assim, mas misturei com remédio e tive a pior crise de impotência e amnesia da minha vida, só dei conta de mim depois de internada novamente.
Daquele porre em diante eu já tinha me determinado a não beber mais. Nunca mais queria sentir aquilo, quando eu fui internada eu não conseguia me levantar da cama, horrível, mas de novo: Culpa da cachaça.
Quando eu sai da internação e eu pude finalmente vir para minha casa eu simplesmente desabei no chão da minha sala sem sentir minhas pernas, sem conseguir mexer nada da cintura para baixo e sem ter bebido nada nos últimos dias.
A única coisa que eu tinha feito diferente dos dias anteriores era fumar além do que vinha fumando, já que na clínica só eram liberados três cigarros por dia e nos dias anteriores na casa do meu pai pouco eu tinha fumado também.
A essa altura do campeonato já existia um possível diagnostico de esclerose múltipla que ainda teria que ser pesquisado com alguns exames, meu pânico naquele momento foi enorme, não tenho nem palavras para descrever tudo que se passou na minha cabeça durante aquele tempo que eu permaneci ali no chão tentando me levantar.
Dessa vez minha consciência estava completamente limpa e eu completamente urinada, jogada no chão e com os cotovelos em carne viva devido ao esforço que eu estava fazendo para me arrastar para chegar em algum lugar, qualquer um, menos ali.
Fui resgatada, levada para o hospital e minha família passou a me tratar com menos frieza quando chegou o resultado do exame de sangue que mostravam que minhas enzimas hepáticas estavam intactas.
Daí em diante fui revirada de cabeça para baixo e a neurologista do hospital não pensou duas vezes antes de me colocar num tratamento de choque à base de cortisonas para eu recuperar o movimento e a sensibilidade nas pernas.
Foi tiro e queda, no dia seguinte eu já sentia novamente minhas pernas.
Nunca mais fumei, desde do dia da internação a única coisa que me passa pela cabeça que pode ter causado algum curto circuito no meu sistema nervoso só pode ter sido o cigarro.
Como sequelas??? Tenho várias.
Já tive visão dupla, ando com dificuldade, estou com incontinência urinária e acreditem, passei em menos de três meses do manequim 42 para o 48.
Não me pesei, não faz diferença mais,
Lembra do início da história? Essa é a parte do carma, era para ser assim.
Esclerose Múltipla é congênita, eu também não pedi para ter, isso é destino, mas ela poderia ter sido diagnosticada e já estar sendo tratada há mais tempo se eu não tivesse me tornado uma alcoólatra e dissimulado os sintomas.
Ter me tornado uma alcoólatra foi porque eu não aceitei o destino de ser obesa por causa de um tratamento que foi feito justamente a base de que?
Cortisona, então agora eu não vou mais brigar com o destino, não estou dizendo que eu vou morrer obesa ou me entregar e engordar indefinidamente, eu sei que isso é uma fase do tratamento, só não vou mais me revoltar como eu me revoltei logo no início do tratamento.
No alcoolismo eu tive que aprender doze passos, doze tradições, doze conceitos e isso foi só depois de cinco internações, tive que aprender a ter aceitação.
Com a esclerose também, vou estudar a respeito, vou aceitar as limitações que ela me impõe.
Todas as duas são incuráveis, progressivas e se não tratadas podem ter terminação fatal, quem aprendeu a lidar com uma, aprende com a outra também e depois eu ainda vou poder curtir a zona que a cortisona está fazendo na minha vida de novo.


Michele Barbosa
20/03/14

Leia a Bula

Foi assim que tudo começou.

Vou resumir muito rapidamente, se é que eu consigo, qual era o meu problema.
Problemas com compulsão, já passei por várias fases na minha vida.
A primeira por comida, operei o estomago e de brinde veio a pôr bebida e com isso eu já tinha, não importa a causa ou origem, hereditária ou não, agora tanto faz, uma doença incurável, progressiva e de terminação fatal e que ainda por cima mata desmoralizando.
Ótimo, numa boa aprendi a conviver com ela, estávamos nos dando super bem, há muito tempo que eu não bebo e venho me tratando com médicos, terapeutas, psicólogos e psiquiatras, procuro muito não me isolar, estar sempre perto de quem me quer bem e quer meu bem, me cerco de todos os lados para não deixar ir por terra o que eu estou construindo de grão em grão.
Ainda por cima, tive o privilégio de ser agraciada com uma família super generosa e compreensiva que vem me proporcionando isso, um tratamento especializado e o conforto de ter a quem recorrer e contar.
Para todos os demais efeitos colaterais e também para não me prolongar muito, leiam as crônicas anteriores.
Esse era um problema, que já está sendo devidamente tratado.
Daí quando eu estava retomando minha vida, destranquei a faculdade, decidi minha carreira e meu futuro veio a porrada.
Eu não conseguia mais andar.
Andar, andar mesmo, aquela coisa que você aprende com um ou dois anos e nem lembra.
Segunda vez na minha vida que acontece isso, segunda nada, terceira.
Minha mãe vai saber a ordem melhor que eu, mas quando eu fui atropelada eu me lembro de ter que aprender a andar de novo no corredor do hospital, eu não conseguia levantar da cama direito e eles me levavam para “passear”, eu era muito nova.
Outra que eu me lembro foi quando eu tive uma virose, que segundo os médicos, o vírus da rubéola se alojou no cerebelo e eu fiquei sem nenhuma coordenação motora
A parte boa, que eu lembro, é que foi na época das olimpíadas do meu colégio e eu odiava aquilo, eu era muito gorda e não sabia jogar nada, nunca era da equipe vermelha que era a mais forte e sempre ganhava, sempre caía na amarela que era a do tipo café-com-leite.
Pela terceira vez eu não conseguia mais andar e fui a um médico. Um médico particular, meu plano não cobria, bem conceituado, eu estudei o curriculum dele na internet antes de pagar a consulta, o cara era ”O Cara”, era não é, não morreu, ele pediu um monte de exames e eu fiz toda-toda, me sentindo a tal e quando vieram os resultados foi que a “casa caiu”.
Agora eu tenho uma tal de uma doença desmielinizante nos nervos, que no laudo esta entre parenteses assim: esclerose múltipla.
A revolta bateu e a ignorância junto, coloquei na cabeça que era aquela coisa de velhinho gagá, fim da vida. Ó céus, ó azar. Como podia eu sóbria e limpa ter isso? O que era isso afinal?
Há pouquíssimo tempo eu tive um problema seríssimo de reações adversas à um medicamento. Sabe quando você cai naquelas letras minúsculas da bula e sente tudo???
Foi aí que tudo começou, daí em diante eu parei de andar e eu sentia muita dor.
O tal médico me pediu um exame que só uma clínica realiza no Rio de Janeiro e adivinha? Meu plano não cobre, se a consulta já é cara o exame pagaria, miseravelmente, nove consultas, para me dizer a mesma coisa: Sou definitivamente esclerosada.
Eu achava injustíssimo ele não me dar um remédio sequer para dor, que médico era esse???
Ele vira na minha cara, diz que eu sou esclerosada, me cobra uma fortuna, não me receita um remédio e ainda por cima me manda fazer RPG e Hidroterapia, foi a única coisa que ele fez além de me fazer chorar a consulta toda.
Na hora eu não quis pensar, não quis responder, não queria nada, eu queria sair dali ou dar uma bengalada na cabeça dele. Coitada da minha mãe que acompanha, sempre sobra para ela, antes, durante e depois.
Esse foi o outro problema e eu tinha que separar um do outro, eu não podia acumular funções.
Lembra quando eu falei que eu não gostava das olimpíadas? Eu sempre gostei de ler.
Afinal o que é isso? O que significa ser assim?
Eu cansei de ficar parada me queixando, me lamentando, me sentindo a última bolacha do pacote e resolvi estudar, de uma forma racional e lógica o meu problema.
Deixei a emoção e a revolta de lado, fui a fundo no meu objetivo que era achar uma das possíveis soluções, sim por que haveria de ter alguma.
Tem um provérbio chinês que diz: “Se você tem um problema, não esquente a cabeça por que tem solução. Se não tem solução, não esquente a cabeça porque você não tem um problema”, é algo assim.
Eu ainda não acabei, mas estou lendo a “A Arte da Guerra” de Sun Tzu e no capítulo que fala das estratégias diz: “A habilidade suprema não consiste em ganhar cem batalhas, mas sim em vencer o inimigo sem combater”. Juntou a fome com a vontade de comer.
Esse médico não é o primeiro a me dizer que o meu problema é que eu tomo remédio demais. São todos prescritos pelos meus médicos, mas da mesma forma que já fizeram besteira uma vez podiam estar fazendo de novo e eu fui fazer o básico.
Ler as bulas.
Além de descobrir que eu estava tomando remédio para epilepsia, coisa que eu não tenho, remédios para crises convulsivas, coisa que eu nunca tive, eu descobri que há muito tempo eu estava tomando um que eu vou ter que copiar e colar a parte das contra-indicações, por que é para ninguém dizer que a maluca sou eu:

Contra-indicações de Bupropiona
Não use cloridrato de Bupropiona: − Se você é alérgico a Bupropiona ou qualquer outro componente dos comprimidos. − Se você está tomando outros medicamentos que contenham Bupropiona. − Se você recebeu diagnóstico de epilepsia ou de outros transtornos convulsivos. − Se você tem ou já teve algum distúrbio de alimentação (por exemplo, bulimia ou anorexia). − Se você é um etilista inveterado que parou de beber há pouco tempo, ou se está tentando parar. − Se você parou recentemente de tomar tranquilizantes ou sedativos, ou se irá parar de tomá-los enquanto usa cloridrato de Bupropiona.
Acho que eu não preciso dizer mais nada né?
Eu suspendi essa medicação e marquei uma consulta de emergência, vou dizer que em cinco dias com as medicação certas eu já ando sem bengala, não sinto mais dor e tive o melhor final de semana em família que há muito tempo eu não tinha.
Milagres não existem.
Então façam o básico, ouçam seus médicos, por que quando a gente precisa é Deus no céu e o médico na terra, mas leiam a bula.
Está escrito na caixa do remédio.

Michele Barbosa
23/09/13