A esclerose e a mulher múltipla de 37 anos
Com todas as conquistas, com todos os hábitos e quem sabe, com todos os defeitos conquistados nesses trinta e sete anos de vida.
sábado, 26 de setembro de 2015
A Zona da Cortisona
Quando falavam para mim que a vida da voltas, que falavam na lei do retorno, que não se pode mudar o destino e que carma é carma, eu não acreditava que isso era tão real e seria tão imediato na minha vida.
Eu não pedi, mas sofri um acidente quando criança e fui submetida a um tratamento à base de cortisona durante um longo período devido a vários coágulos que se formaram no meu cérebro, isso foi destino, estava escrito na minha vida que eu sofreria esse acidente.
Sobrevivi, como sequela eu me tornei uma criança gordinha vivi uma adolescente gorda e quando estava entrando na fase adulta já estava muito, mas muito gorda mesmo.
Um amigo que é médico me falou com uma naturalidade, própria de um profissional de saúde, no meio de uma festa, que no hospital onde ele trabalhava estavam fazendo a cirurgia para obesidade mórbida.
Na época que fiz a cirurgia, início dos anos 2000, existiam poucos estudos a respeito dos efeitos danosos que este tipo de cirurgia poderia causar, só se falava nos efeitos benéficos e foi apostando neles que eu embarquei de cabeça nessa empreitada.
Isso ai já fui eu tentando mudar o destino, o fato é que eu levei cinco anos para atingir a perda total de peso, foram no total 70 kg e quando isso aconteceu, algo mais aconteceu junto, eu passei a beber bebidas alcoólicas de forma mais intensa, me tornei alcoólatra e a sofrer como 67% das pessoas que são submetidas a esse tipo de cirurgia, mas como eu já disse, esses estudos só vieram à público quando para mim o processo já era irreversível.
Com o tempo eu passei a apresentar alguns problemas neurológicos que, aparentemente, eram causados pelo alcoolismo.
Cada vez que eu extrapolava na bebedeira eu perdia a coordenação das pernas durante um ou dois dias, perdia o controle dos meus esfíncteres anais no meio da rua e passava vergonha, mas quem sempre levava a culpa era a maldita da cachaça e é claro que, como toda e qualquer alcoólatra que já tinha sido internada algumas vezes e a última coisa que queria era ser novamente internada, eu dissimulava esses sintomas até o limite.
Eu sempre tinha a consciência pesada e não adiantava ficar discutindo, uma hora eu ia perder a razão, até que um belo dia, pouco após uma internação, eu estava em casa e passei a tomar um remédio prescrito por um neurologista que me causou uma reação adversa e me trouxe os mesmos sintomas, mesmo com ex-namorado como testemunha a minha família inteira adentrou a minha casa para ter certeza absoluta que eu era a maior mentirosa do mundo.
Aquilo me incomodou muito, muito mesmo, mas como sempre existe um culpado, dessa vez foi o remédio.
O relacionamento acabou, minha estabilidade também, existia a hipótese do problema neurológico ser bem grave os sintomas só pioravam e nem bebi tanto assim, mas misturei com remédio e tive a pior crise de impotência e amnesia da minha vida, só dei conta de mim depois de internada novamente.
Daquele porre em diante eu já tinha me determinado a não beber mais. Nunca mais queria sentir aquilo, quando eu fui internada eu não conseguia me levantar da cama, horrível, mas de novo: Culpa da cachaça.
Quando eu sai da internação e eu pude finalmente vir para minha casa eu simplesmente desabei no chão da minha sala sem sentir minhas pernas, sem conseguir mexer nada da cintura para baixo e sem ter bebido nada nos últimos dias.
A única coisa que eu tinha feito diferente dos dias anteriores era fumar além do que vinha fumando, já que na clínica só eram liberados três cigarros por dia e nos dias anteriores na casa do meu pai pouco eu tinha fumado também.
A essa altura do campeonato já existia um possível diagnostico de esclerose múltipla que ainda teria que ser pesquisado com alguns exames, meu pânico naquele momento foi enorme, não tenho nem palavras para descrever tudo que se passou na minha cabeça durante aquele tempo que eu permaneci ali no chão tentando me levantar.
Dessa vez minha consciência estava completamente limpa e eu completamente urinada, jogada no chão e com os cotovelos em carne viva devido ao esforço que eu estava fazendo para me arrastar para chegar em algum lugar, qualquer um, menos ali.
Fui resgatada, levada para o hospital e minha família passou a me tratar com menos frieza quando chegou o resultado do exame de sangue que mostravam que minhas enzimas hepáticas estavam intactas.
Daí em diante fui revirada de cabeça para baixo e a neurologista do hospital não pensou duas vezes antes de me colocar num tratamento de choque à base de cortisonas para eu recuperar o movimento e a sensibilidade nas pernas.
Foi tiro e queda, no dia seguinte eu já sentia novamente minhas pernas.
Nunca mais fumei, desde do dia da internação a única coisa que me passa pela cabeça que pode ter causado algum curto circuito no meu sistema nervoso só pode ter sido o cigarro.
Como sequelas??? Tenho várias.
Já tive visão dupla, ando com dificuldade, estou com incontinência urinária e acreditem, passei em menos de três meses do manequim 42 para o 48.
Não me pesei, não faz diferença mais,
Lembra do início da história? Essa é a parte do carma, era para ser assim.
Esclerose Múltipla é congênita, eu também não pedi para ter, isso é destino, mas ela poderia ter sido diagnosticada e já estar sendo tratada há mais tempo se eu não tivesse me tornado uma alcoólatra e dissimulado os sintomas.
Ter me tornado uma alcoólatra foi porque eu não aceitei o destino de ser obesa por causa de um tratamento que foi feito justamente a base de que?
Cortisona, então agora eu não vou mais brigar com o destino, não estou dizendo que eu vou morrer obesa ou me entregar e engordar indefinidamente, eu sei que isso é uma fase do tratamento, só não vou mais me revoltar como eu me revoltei logo no início do tratamento.
No alcoolismo eu tive que aprender doze passos, doze tradições, doze conceitos e isso foi só depois de cinco internações, tive que aprender a ter aceitação.
Com a esclerose também, vou estudar a respeito, vou aceitar as limitações que ela me impõe.
Todas as duas são incuráveis, progressivas e se não tratadas podem ter terminação fatal, quem aprendeu a lidar com uma, aprende com a outra também e depois eu ainda vou poder curtir a zona que a cortisona está fazendo na minha vida de novo.
Michele Barbosa
20/03/14
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